A crise hídrica não é só um problema de falta de água, e sim de falta de gestão e de planejamento. Mesmo com abundância de recursos hídricos vamos continuar tendo problema se não houver planejamento e gestão integrada. A afirmação foi feita na manhã de quinta-feira (20) por um dos maiores especialistas em gerenciamento de recursos hídricos e recuperação de reservatórios do país, José Galizia Tundisi. “Há uma crise, a crise é séria e é preciso transparência quanto à sua dimensão e persistência”, ressaltou, chamando atenção para a amplitude da situação que afeta toda a economia do estado mais rico da federação. “Até os bancos estão preocupados com a crise. Eles temem que seus clientes produzam e vendam menos e se tornem inadimplentes.”
Orientador em programas de mestrado e doutorado da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e diretor do Instituto Internacional de Ecologia, na mesma cidade do interior paulista, ele foi um dos especialistas presentes à audiência pública promovida pelo Ministério Público Federal e Estadual, Ministério Público do Trabalho em São Paulo e a Defensoria Pública estadual. A audiência, que prossegue amanhã, ao longo de todo o dia, acontece dois dias após a declaração oficial pelo governo de Geraldo Alckmin de que a bacia hidrográfica do Alto Tietê, que compreende toda a Região Metropolitana de São Paulo, está em “situação de criticidade hídrica”.
Tundisi destacou que a redução no fornecimento de água está diretamente associada ao aumento da degradação da qualidade, o que coloca em risco a saúde da população. O problema pode ser enfrentado com investimentos para a proteção dos mananciais. “Estudos mostram que quanto menor a cobertura vegetal nos mananciais, maior o custo com tratamento de água”, disse.
Transparência e gestão compartilhada
Ele criticou a centralização da gestão hídrica, principalmente num momento crítico, e defendeu a gestão integrada dos recursos hídricos, incluindo a população. “São necessários planos de contingência e medidas de longo prazo, como o tratamento de esgoto. Falta água porque não tratamos o esgoto."
Esse aspecto ressaltado pelo especialista de São Carlos, aliás, foi central na fala do professor da Universidade de Massachusetts, nos Estados Unidos, e especialista e crises hídricas Richard Palmer. “Quando o público é chamado, tende a responder. Não envolver a população é um convite à falência do sistema”, resumiu o norte-americano, que tem participado de seminários promovidos pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) para discutir o problema.
O coordenador desses trabalhos na Unicamp é o professor e especialista em recursos hídricos Antônio Carlos Zuffo. Ele e Tundisi tem assessorado voluntariamente toda a atuação dos promotores de Justiça do Meio Ambiente que investigam o alcance e responsáveis pela crise.
Zuffo falou principalmente sobre a situação crítica dos reservatórios do sistema Cantareira. Segundo ele, o Sistema Cantareira não consegue mais regularizar a vazão de 36 metros cúbicos por segundo, volume que baseou a partilha de água definida em 2004, quando foi renovada a outorga do sistema. Na época, as Bacias dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ) obtiveram o direito a 5 metros cúbicos por segundo e a Grande São Paulo de 31 metros cúbicos.
A manutenção dessa vazão é o que a Sabesp pleiteia na renovação da outorga, prevista para outubro. De acordo com Zuffo, está para ser outorgada uma vazão que não vai ser atendida. "A vazão hoje é metade do que era quando os reservatórios foram construídos. O sistema não tem capacidade”, alertou.
Curva de aversão
"Existem períodos longos de precipitações mais altas, com maiores extremos de precipitações, havendo necessidade de volumes maiores para a regularização de vazões. Os volumes do sistema Cantareira, baseado no histórico de registros de 1930 a 2013, regulariza somente 32 metros cúbicos", afirmou.
Ele voltou a criticar o descumprimento da chamada curva de aversão ao risco, um acompanhamento da evolução ao longo do tempo que permitiria controlar a quantidade de água a ser retirada. “A renovação da outorga de captação no Cantareira previa uma curva de aversão ao risco. Se esse alerta de risco tivesse sido obedecido nós não estaríamos nesta situação hoje.”
Entre os presentes que se manifestaram, não havia nomes de representantes da Sabesp nem do DAEE. O diretor-presidente da ANA, Vicente Andreu Gillo, disse que a atual crise expõe, entre outras fragilidades da gestão, a falta de diálogo entre os comitês de Bacia, dos gestores com os usuários e também da indefinição nas novas regras de outorga, que deverá ser assinada em outubro. De acordo com ele, a agência vai realizar audiências públicas para avançar na definição das normas – o que para ele é uma questão mais política do que técnia.
Produção de provas
O objetivo dos procuradores e promotores de Justiça é colher relatos sobre o impacto da falta de água na vida dos paulistas, sobretudo os mais pobres, para produzir provas para as dezenas de inquéritos e ações civis públicas em andamento. Só no Ministério Público estadual há mais de 50 deles, que apuram rodízio, desperdício, racionamento, qualidade da água, nível dos reservatórios, transparência de informações, improbidade e impacto ambiental.
Há pelo menos 11 contratos milionários da Sabesp, todos sem licitação, baseados na emergência da crise, sendo investigados no Ministério Público de Contas de São Paulo. Já o Ministério Público do Trabalho apura a terceirização na Sabesp. No entendimento dos procuradores, o trabalho deveria ser feito pela própria empresa. E a Defensoria já se prepara para atender a população mais vulnerável, já que, na crise ambiental, os mais prejudicados são os mais pobres, com a sobretaxa e a exposição a doenças pela água contaminada.
No período da tarde, procuradores e promotores ouviram prefeitos, vereadores, sindicalistas, lideranças comunitárias e demais interessados. A lista de temas é tão ampla quanto as implicações da crise hídrica, que extrapola a falta de água: falta de tratamento do esgoto e saneamento básico, adoção das sobretaxas, falta de transparência do governo e de informações sobre o esvaziamento dos reservatórios, rodízio feito às ocultas, racionamento implícito e redução da pressão nas regiões mais carentes do estado, dificuldade de acesso ao monitoramento da qualidade de água, riscos à saúde e seu impacto no Sistema Único de Saúde, informações sobre planos de contingência e as obras emergenciais anunciadas pela Sabesp, previsibilidade da crise e a falta de medidas preventivas, estruturais e de longo prazo a serem adotadas pelos órgãos de gestão e fiscalização, as repercussões da crise de energia, contratos firmados com as grandes empresas sem licitação, impactos negativos às comunidades tradicionais, garantia do fornecimento aos serviços públicos essenciais, como escolas e hospitais, além do acolhimento à população em situação de rua e as demais entidades de atenção e acolhimento de populações vulneráveis.