Entre outras propostas, PL 6.840, que tramita na Câmara, sugere que currículos do ensino médio sejam organizados por áreas do conhecimento. Educadores afirmam que isso fere princípios da Constituição e da LDB.
Um projeto de lei atualmente em tramitação no Congresso Nacional que propõe mudanças no ensino médio brasileiro vem levantando questionamentos de professores, pesquisadores e até da Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação (MEC). Trata-se do PL 6.840/2013 , elaborado pela Comissão Especial destinada a promover Estudos e Proposições para a Reformulação do Ensino Médio (CEENSI) da Câmara dos Deputados, presidida pelo deputado federal Reginaldo Lopes (PT-MG) e que tem como relator o deputado Wilson Filho (PTB-PB). Argumentando que o currículo atual do ensino médio é “ultrapassado, extremamente carregado, com excesso de conteúdos, formal, padronizado, com muitas disciplinas obrigatórias numa dinâmica que não reconhece as diferenças individuais e geográficas dos alunos”, o projeto propõe alterações na Lei 9.634/1996 , a Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional (LDB).
A principal – e mais controversa – alteração proposta pelo projeto é a organização dos currículos do ensino médio por áreas do conhecimento. Pela proposta, os estudantes poderiam escolher, no terceiro do ano do ensino médio, entre diferentes opções formativas: linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e formação profissional. “Assim, o aluno poderá optar pela formação que mais se adéqua às suas preferências e necessidades, possibilitando, inclusive, uma preparação mais adequada àqueles que pretendem ingressar na educação superior ou antecipar sua entrada no mercado de trabalho”, afirma a justificativa do projeto. Além disso, o projeto institui a jornada em tempo integral no ensino médio, aumentando de 800 para 1400 horas a carga horária mínima anual nessa etapa de formação, e elimina a possibilidade de menores de 18 anos cursarem o ensino médio no período noturno.
Para Marise Ramos, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), o projeto, caso aprovado, representaria um enorme retrocesso. “Isso representa um retorno à legislação da Reforma Capanema da década de 40, em que o ensino era dividido entre o clássico, o científico e o profissionalizante. Até hoje é possível encontrar pessoas que estudaram sob a égide dessa legislação que nunca estudaram química ou física, porque fizeram o percurso clássico, ou que nunca estudaram filosofia, sociologia ou mesmo história”, compara. Essa “fragmentação”, para Marise, refletia uma visão instrumental da educação e um enfoque na formação de mão de obra para o mercado de trabalho.
Nesse aspecto, segundo ela, a LDB, de 1996, trouxe avanços, consagrando, em seu artigo 22, o entendimento de que a educação básica (da qual faz parte o ensino médio) tem a finalidade de assegurar ao educando “a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e no prosseguimento de estudos”. Essa concepção está inscrita também no artigo 205 da Constituição Federal, segundo o qual a educação deve visar “ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Em nota técnica sobre o PL 6.840, a Secretaria de Educação Básica do MEC afirma que o projeto fere as formulações inscritas na LDB e na Constituição, “pois o fato de ser obrigatório fazer alguma opção estabelece uma diferenciação formativa no ensino médio, portanto, na educação básica, que fere o princípio constitucional da igualdade de acesso aos bens culturais produzidos pela humanidade com vistas à formação integral de todo e cada cidadão”.
A nota técnica faz diversas objeções ao texto do projeto, e uma delas diz respeito à instituição da jornada em tempo integral, de 7 horas diárias, que é, segundo a nota, positiva em tese; na prática, no entanto, a medida acaba sendo prejudicial aos estudantes mais pobres. “Do ponto de vista da realidade socioeconômica da grande parte dos jovens brasileiros oriundos dos setores populares, representa uma forma de exclusão do Ensino Médio ministrado no período diurno, dado o fato de que tal parcela significativa da população jovem do país trabalha, seja para contribuir para a renda familiar, seja para suprir suas próprias necessidades. É, portanto, nesse contexto, medida discricionária, que institui um Ensino Médio diferenciado para uma população jovem com melhores condições de vida e relega, ainda mais, ao curso noturno os setores populares”, diz a nota.
O ensino médio noturno, pela proposta da Comissão Especial da Câmara, ficaria restrito aos maiores de 18 anos. A alteração sugerida pelo projeto à LDB gerou críticas da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), que publicou uma petição na internet contra a aprovação do projeto. No texto da petição, a Anped afirma: “Dados do IBGE de 2011 informam que 31,5% dos jovens de 15 a 17 anos trabalham e estudam, estudam e procuram emprego ou só trabalham. Isso significa que acabar com o ensino noturno para essa faixa de idade é, de fato, excluí-la do sistema de ensino. Destinar o ensino médio noturno apenas à faixa etária dos 18 anos em diante significa duplicar uma política já existente, que é a EJA, ou em outros termos, a superposição de modalidades que cumprem a mesma atribuição”.
Especificamente na área da educação profissional, tanto a Anped quanto a Secretaria de Educação Básica do MEC entendem que a proposta em tramitação na Câmara traz problemas. Um deles é a inclusão da opção de formação profissional no último ano do ensino médio, que, para a Anped, “nega a existência da modalidade de Ensino Médio Integrado à Educação Técnico Profissional”.
Para Marise Ramos, o projeto enfatiza as formas concomitante e subsequente de educação profissional em detrimento da formação profissional integrada ao ensino médio . Para ela, isso sinaliza uma consonância do PL 6.840 com o direcionamento que as políticas de educação profissional têm tomado nos últimos anos, com a ampliação do número de vagas por meio de parcerias com a iniciativa privada, principalmente através do Pronatec (saiba mais no especial da EPSJV sobre o programa). Indício disso é o artigo 36-E do PL 6.840, onde se lê que a oferta de educação profissional “poderá ser feita em regime de parceria entre os entes federados e o setor produtivo, com vistas à ampliação das oportunidades educacionais”. Marise analisa: “Com essas alterações na LDB, fica fácil você fazer parcerias para que os estudantes cursem o terceiro ano no Sistema S ou outras instituições privadas. Suponhamos: você tem um aluno numa escola estadual que tem parceria com o Senai, por exemplo. Ele faz os primeiros dois anos na escola e no terceiro ano vai para o Senai. E aí como ele é aluno da escola pública, o Estado é quem vai subsidiar o Sistema S para fazer isso. Bom demais para quem ganha com isso, só não é bom para a classe trabalhadora, que acaba tendo sua formação reduzida somente às necessidades do mercado de trabalho”.
A EPSJV entrou em contato com a assessoria do deputado Wilson Filho, relator do projeto, para que ele respondesse às críticas apresentadas, mas até o prazo de fechamento da matéria não havia conseguido agendar uma entrevista com o parlamentar.
Por André Antunes – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV)